domingo, 20 de dezembro de 2009

Residente persistente


Ser médico no Brasil. De onde tirei essa idéia? Afinal, com tantas profissões para escolher com mais status, glamour e reconhecimento, por que me dedicar a cuidar da saúde alheia? Já me formei há três anos e ainda me pergunto por que marquei cento e cinqüenta na maldita inscrição do vestibular.
Sempre gostei de estudar, me interessava por quase todos os assuntos na escola, menos matemática, que para mim sempre foi uma ciência além do alcance, abstrata, quase tão infinita quanto o universo ou a eternidade. Por mais que me esforçasse, precisava de referenciais mais concretos, mais palpáveis, mais humanos.
Acho que o que me fez optar foi a minha solidão da adolescência associada à curiosidade pela biologia do ser humano e ao impulso quase involuntário de ajudar os outros. Eu precisava da complexidade da relação com a outra pessoa, pois só através dela eu ia crescer. Queria, ao mesmo tempo, estudar as doenças e as pessoas.
Então, na busca dessa dualidade entre o científico e o romântico, entre a médica e a naturalista, ingressei na Faculdade de Medicina. Atravessei essa fase sem muitas dificuldades, blindada pelo efeito protetor da academia. E foi realmente na residência médica, período de treinamento em serviço, uma espécie de intermédio entre estágio e emprego, é que realmente vi a realidade da profissão.
Ainda sou residente e serei ainda por alguns anos, infinita formação... Minha condição é a mais ingrata, pois ainda não posso responder plenamente por meus atos e dependo de famigerados supervisores. Para eles, nada é problema, pois o comentário é sempre o mesmo:
- Na minha época era muito pior. Não sei do que vocês estão reclamando. Se tivéssemos pessoal suficiente, não precisaríamos de vocês. Não tenho obrigação nenhuma em ajudar vocês, pois sou professor. Meu lugar é na frente do quadro negro, e não ganho como médico.
E estão sempre prontos a condenar os pobre-coitados como preguiçosos, chatos, malucos, burros ou aproveitadores. Quando você faz alguma coisa boa que deu certo, ninguém te agradece ou parabeniza, pois é somente sua obrigação. Dar plantões infernais de vinte e quatro horas sozinho, sem descanso, trabalhar em precárias condições por oitenta horas semanais, receber um salário de miséria pela responsabilidade assumida, ser desrespeitado por todo e qualquer ser humano, desde chefes, colegas, médicos, professores, pacientes, acompanhantes, funcionários é apenas normal. Carregar esse peso, esse verdadeiro piano de cauda durante tanto tempo... Confesso que estou cansada de ser escravizada em troca de conhecimento. Sou muito grata pelo que aprendi, mas gostaria de ser respeitada. Seria pedir muito?
É aceitável um médico estudar seis anos, fazer quatro anos de residência, se dedicar com o máximo esmero ao tratamento de seus pacientes, inclusive daquele pobre adolescente com leucemia, sem doador compatível, que não responde a nenhum tratamento, agonizando e sem a menor chance de cura, e mesmo assim passa noites em claro ao seu lado para lhe dar conforto, receber vassouradas da mãe desequilibrada que não aceita a morte do filho? Apesar de te sido informada da gravidade do quadro, ela não admite a situação e por isso se arma com o primeiro objeto que encontra na frente e sai numa corrida tragicômica pelos corredores da enfermaria aos berros atrás do “responsável” pela morte do seu filho? Vivo numa barbárie e tenho que aprender diariamente a conviver com a morte, o terrível, a injustiça, a miséria, o incompreensível, o natural.
Acho que só agüento viver assim porque sou boba, porque não tenho grandes ambições e porque tenho boa-fé, Compro gato por lebre a todo momento e fico feliz. Sigo minha vocação tranqüila pois confio em mim e sei que estou fazendo o melhor pelo paciente. Sinto grande satisfação no meu trabalho e isso é a minha prazerosa recompensa. Visto-me de uma boa-aventurança e, com ela, ganho sabedoria e liberdade para viver. Porém, tudo tem limite e chega um ponto que nem a poesia das relações que me permite ver, ouvir e tocar o mundo é capaz de sustentar a vida de residente.

Rio de Janeiro, 17 de Dezembro de 2009

domingo, 13 de dezembro de 2009

Carnaval IV – Chocalhos

Assim mesmo, no plural. Como na Biologia, são um gênero que abrange várias espécies: rocar, ganzá, xequerê , caxixi,... Seus múltiplos sons são diferentes entre si, mas têm algo em comum. Eles são a pimenta do bobó, o dendê da moqueca, a laranja da feijoada, o açúcar do café.
Sua presença não é fundamental, mas sem eles a música não tem graça. Quando agitados, dão vida às canções, imprimindo gingado, suingue, malícia e improviso. Fazem os acordes mais leves e espontâneos.
Para quem escuta, é mais do que isso, representa a tradução musical da dança. É o arrastar dos chinelos no salão, o roçar sensual das barrigas que se tocam ou o tímido jogo de ombros da cabrocha faceira.
Encanto-me em descobrir as levadas. Experimentar os sons dos diferentes tipos de areia e semente dentro do oco cilindro de alumínio ou da cestinha de palha. Chacoalhar as miçangas fora da gorducha moranga, achar a matemática certa para coincidir com os tempos da música... e percebo que sou destra na arte do agitamento rítmico! Como uma coisa tão simples pode ser tão importante e dar tanto prazer? Considero ser esta uma nova possibilidade de linguagem, tendo nas mãos instrumento que é, na realidade, uma continuação do meu corpo e que fala por si.
Às vezes, me desligo, entro em transe, instintivamente toco e vejo no que dá. Em geral é quando toco melhor. É só cair em mim e perceber o que estou fazendo que me dá um curto-circuito cerebral, me descoordeno e começo a errar.
Dependendo da música, pode ser uma atividade absolutamente extenuante, samba e quadrilha, principalmente. É um ritmo tão acelerado que antes de começar, tenho sempre a impressão que não vou conseguir. Depois de alguns minutos, o braço começa a queimar e a ficar duro. A musculatura peitoral também fica dolorida, um calor infernal, respiração ofegante, suor brotando de todos os poros, o rosto corado pelo esforço. Praticamente um exercício aeróbio, uma corrida, um pique de duzentos metros. Ainda bem que não é o tempo todo assim, e as levadas mais calmas compensam e permitem o breve descanso.
Sua pegada deve ser leve, deixando o instrumento solto nas mãos, livre para criar. Aproveitar cada movimento de ida e volta, ele pode estar como pode não estar. E quando está, é de forma ao mesmo tempo despretenciosa e marcante, expressiva. É uma combinação de seriedade com brincadeira, praticamente impossível não notá-lo.
No rocar, as platinelas fazem um barulho extremamente alto, dependendo do lugar onde esteja acontecendo, podem realmente ser incovenientes. Mas, onde estou, no coração da bateria, cercada na frente pelos alegres tamborins, nos lados pelos agogôs, atrás pelas caixas e repiques e ao fundo pelos potentes surdos, ignoro qualquer desconforto. Ouço tudo harmonicamente e doso, na medida certa, o meu precioso tempero nesta salada musical.