domingo, 20 de dezembro de 2009

Residente persistente


Ser médico no Brasil. De onde tirei essa idéia? Afinal, com tantas profissões para escolher com mais status, glamour e reconhecimento, por que me dedicar a cuidar da saúde alheia? Já me formei há três anos e ainda me pergunto por que marquei cento e cinqüenta na maldita inscrição do vestibular.
Sempre gostei de estudar, me interessava por quase todos os assuntos na escola, menos matemática, que para mim sempre foi uma ciência além do alcance, abstrata, quase tão infinita quanto o universo ou a eternidade. Por mais que me esforçasse, precisava de referenciais mais concretos, mais palpáveis, mais humanos.
Acho que o que me fez optar foi a minha solidão da adolescência associada à curiosidade pela biologia do ser humano e ao impulso quase involuntário de ajudar os outros. Eu precisava da complexidade da relação com a outra pessoa, pois só através dela eu ia crescer. Queria, ao mesmo tempo, estudar as doenças e as pessoas.
Então, na busca dessa dualidade entre o científico e o romântico, entre a médica e a naturalista, ingressei na Faculdade de Medicina. Atravessei essa fase sem muitas dificuldades, blindada pelo efeito protetor da academia. E foi realmente na residência médica, período de treinamento em serviço, uma espécie de intermédio entre estágio e emprego, é que realmente vi a realidade da profissão.
Ainda sou residente e serei ainda por alguns anos, infinita formação... Minha condição é a mais ingrata, pois ainda não posso responder plenamente por meus atos e dependo de famigerados supervisores. Para eles, nada é problema, pois o comentário é sempre o mesmo:
- Na minha época era muito pior. Não sei do que vocês estão reclamando. Se tivéssemos pessoal suficiente, não precisaríamos de vocês. Não tenho obrigação nenhuma em ajudar vocês, pois sou professor. Meu lugar é na frente do quadro negro, e não ganho como médico.
E estão sempre prontos a condenar os pobre-coitados como preguiçosos, chatos, malucos, burros ou aproveitadores. Quando você faz alguma coisa boa que deu certo, ninguém te agradece ou parabeniza, pois é somente sua obrigação. Dar plantões infernais de vinte e quatro horas sozinho, sem descanso, trabalhar em precárias condições por oitenta horas semanais, receber um salário de miséria pela responsabilidade assumida, ser desrespeitado por todo e qualquer ser humano, desde chefes, colegas, médicos, professores, pacientes, acompanhantes, funcionários é apenas normal. Carregar esse peso, esse verdadeiro piano de cauda durante tanto tempo... Confesso que estou cansada de ser escravizada em troca de conhecimento. Sou muito grata pelo que aprendi, mas gostaria de ser respeitada. Seria pedir muito?
É aceitável um médico estudar seis anos, fazer quatro anos de residência, se dedicar com o máximo esmero ao tratamento de seus pacientes, inclusive daquele pobre adolescente com leucemia, sem doador compatível, que não responde a nenhum tratamento, agonizando e sem a menor chance de cura, e mesmo assim passa noites em claro ao seu lado para lhe dar conforto, receber vassouradas da mãe desequilibrada que não aceita a morte do filho? Apesar de te sido informada da gravidade do quadro, ela não admite a situação e por isso se arma com o primeiro objeto que encontra na frente e sai numa corrida tragicômica pelos corredores da enfermaria aos berros atrás do “responsável” pela morte do seu filho? Vivo numa barbárie e tenho que aprender diariamente a conviver com a morte, o terrível, a injustiça, a miséria, o incompreensível, o natural.
Acho que só agüento viver assim porque sou boba, porque não tenho grandes ambições e porque tenho boa-fé, Compro gato por lebre a todo momento e fico feliz. Sigo minha vocação tranqüila pois confio em mim e sei que estou fazendo o melhor pelo paciente. Sinto grande satisfação no meu trabalho e isso é a minha prazerosa recompensa. Visto-me de uma boa-aventurança e, com ela, ganho sabedoria e liberdade para viver. Porém, tudo tem limite e chega um ponto que nem a poesia das relações que me permite ver, ouvir e tocar o mundo é capaz de sustentar a vida de residente.

Rio de Janeiro, 17 de Dezembro de 2009

domingo, 13 de dezembro de 2009

Carnaval IV – Chocalhos

Assim mesmo, no plural. Como na Biologia, são um gênero que abrange várias espécies: rocar, ganzá, xequerê , caxixi,... Seus múltiplos sons são diferentes entre si, mas têm algo em comum. Eles são a pimenta do bobó, o dendê da moqueca, a laranja da feijoada, o açúcar do café.
Sua presença não é fundamental, mas sem eles a música não tem graça. Quando agitados, dão vida às canções, imprimindo gingado, suingue, malícia e improviso. Fazem os acordes mais leves e espontâneos.
Para quem escuta, é mais do que isso, representa a tradução musical da dança. É o arrastar dos chinelos no salão, o roçar sensual das barrigas que se tocam ou o tímido jogo de ombros da cabrocha faceira.
Encanto-me em descobrir as levadas. Experimentar os sons dos diferentes tipos de areia e semente dentro do oco cilindro de alumínio ou da cestinha de palha. Chacoalhar as miçangas fora da gorducha moranga, achar a matemática certa para coincidir com os tempos da música... e percebo que sou destra na arte do agitamento rítmico! Como uma coisa tão simples pode ser tão importante e dar tanto prazer? Considero ser esta uma nova possibilidade de linguagem, tendo nas mãos instrumento que é, na realidade, uma continuação do meu corpo e que fala por si.
Às vezes, me desligo, entro em transe, instintivamente toco e vejo no que dá. Em geral é quando toco melhor. É só cair em mim e perceber o que estou fazendo que me dá um curto-circuito cerebral, me descoordeno e começo a errar.
Dependendo da música, pode ser uma atividade absolutamente extenuante, samba e quadrilha, principalmente. É um ritmo tão acelerado que antes de começar, tenho sempre a impressão que não vou conseguir. Depois de alguns minutos, o braço começa a queimar e a ficar duro. A musculatura peitoral também fica dolorida, um calor infernal, respiração ofegante, suor brotando de todos os poros, o rosto corado pelo esforço. Praticamente um exercício aeróbio, uma corrida, um pique de duzentos metros. Ainda bem que não é o tempo todo assim, e as levadas mais calmas compensam e permitem o breve descanso.
Sua pegada deve ser leve, deixando o instrumento solto nas mãos, livre para criar. Aproveitar cada movimento de ida e volta, ele pode estar como pode não estar. E quando está, é de forma ao mesmo tempo despretenciosa e marcante, expressiva. É uma combinação de seriedade com brincadeira, praticamente impossível não notá-lo.
No rocar, as platinelas fazem um barulho extremamente alto, dependendo do lugar onde esteja acontecendo, podem realmente ser incovenientes. Mas, onde estou, no coração da bateria, cercada na frente pelos alegres tamborins, nos lados pelos agogôs, atrás pelas caixas e repiques e ao fundo pelos potentes surdos, ignoro qualquer desconforto. Ouço tudo harmonicamente e doso, na medida certa, o meu precioso tempero nesta salada musical.

domingo, 22 de novembro de 2009

Carnaval III – Cuíca

E, então, fico parada quase duas horas olhando... Quem som mais estranho! Prende totalmente minha atenção e os demais instrumentos ficam em segundo plano. Como se toca? Qual seria sua escala musical? Como foi criado? É um instrumento tipicamente brasileiro, porém ainda enigmático para muitos de nós.

Seu nome é simpático, tem um quê de ingenuidade e simplicidade. Não poderia ser diferente, já que é um instrumento popular, introduzido no Brasil pelos escravos. Às vezes acho que seu som se assemelha ao de um grito preso na garganta, e por isso sai distorcido e frenético. Quando fecho os olhos, imagino um pântano sombrio e escuto o canto dos sapos brejeiros. Sob a forma de grunhidos, gemidos, soluços e guinchos, eles exaltam o samba e garantem beleza para a música, a tornando especial.

Das gargantas dos sapos no fundo do brejo lamacento para o esplendor esfuziante do carnaval na avenida em milésimos de segundo, apenas com o abrir dos olhos. Fundamental para a cadência maliciosa das mulatas que brilham com suas coreografias acrobáticas na frente da poderosa bateria.

A questão é como, através de movimentos de ida e volta, dentro daquele cilindro metálico e com o auxílio da mão que pressiona a pele externa, se consegue produzir sua música? Minha imaginação é incapaz de criar uma forma de fricção que imite o ronco da cuíca selvagem. Um dia ainda decifro teus mistérios, ó cuíca, esfinge do samba.

Rio de Janeiro, 28 de Setembro de 2009

Carnaval II - Primeira

Sou primeira. Sou primeira porque é o surdo marcador, surdo de base. Ele é fundamental, determina a levada de toda a bateria e é o coração do samba. Pulsa grave e forte e leva consigo uma multidão de alegres foliões.

Antes de começar, faço o alongamento necessário para suportar o enorme tambor. Visto o talabarte curto e escarlate e o ajusto em minha cintura. Sinto todo o peso e responsabilidade da bateria em minha lombar. Uma nota errada põe tudo a perder. Concentração!

Em uma mão a maceta, com seu feltro já gasto de tanto castigar o tímpano cansado, na outra nada, livre. Esta abafa o couro tremedor e faz o contraponto. Tum-bin, tum-bin, tum-bin. Pedi pra parar, parou!

É uma questão de ritmo que segue até a convenção. Para então acelerar o compasso em uma espécie de taquicardia sonora, impulsionando o sangue que, nas veias, estava calmo e tranqüilo, como um rio de águas barrentas desembocando no mar. Temos agora uma pororoca musical energizante e revolucionária.

Não tampo meus ouvidos. Estão completamente abertos, assim como meu peito, que vibra junto com a potente membrana cilíndrica. Remete- nos às civilizações mais primitivas e é a minha rudimentar maneira de comunicação, me deixa em estado de graça e permite que eu exponha meu núcleo hermético, neutro e frágil.

Pulso sincronizada com os demais surdos, segunda e terceira, nesta harmônica família percussionista. Eles respondem, cortam e provocam o primeira, que mantém a cadência principal e não se deixa levar.

Há diálogo também com os outros naipes, mas nenhum instrumento é como ele. Tamborim, agogô e rocar são exemplos da beleza do samba. Mas neste momento, eu dispenso a beleza e quero a identidade! Despeço-me disso tudo sem desilusão. Apenas não faz mais sentido. É indispensável! Preciso sentir a essência do samba em sua batida mais pura, a batida primeira.

Rio de Janeiro, 24 de Agosto de 2009

Carnaval I - Tamborim

É carnaval! Como, se estamos em julho? É que carnaval é um estado de espírito, não tem qualquer relação com a época do ano. Que bom! Podemos, então, pular carnaval o ano todo nos redutos perenes do samba. Batuque bom e convidativo, que encanta e que está a alcance de todos.

Uma bateria uníssona composta de muitos instrumentos. Qual escolher? Identifiquei-me com o intrigante e nada discreto tamborim. Leve, portátil e barato. Quem olha de longe não faz idéia de como é difícil tocar! Um, dois, três, quatro. Um, dois, três, quatro. Por que o som da volta é diferente do da ida? Mais uma vez, agora mais rápido: um, dois, três, quatro. É... tocar rápido não é fácil e o braço fica duro de ansiedade. Com o tempo, aprende-se que o mais difícil no tamborim é justamente não tocar e esperar o tempo certo. A respiração ajuda, os momentos de pausa são essenciais porque música é feita de som e silêncio, caso contrário seria um ruído contínuo e monótono. Espera, espera... agora!

No aprendizado do tamborim, a repetição é a chave de tudo. A memória não é apenas sonora, mas também corporal. Uma das vantagens deste instrumento é que podemos dançar e tocar ao mesmo tempo. Pode parecer estranho, mas fazer as duas coisas juntas é mais fácil do que apenas tocar. Muitas coreografias foram criadas e eu mesma posso inventar as minhas. Ao longo das aulas, vou pegando intimidade com a pele plástica e estridente e percebo que é preciso usar os braços em movimentos sincronizados de bíceps em ida e volta, que com a experiência, se tornam despreocupados,

Mas ele não está sozinho, sob a regência das caixas e dos chocalhos, ele dialoga com os surdos, repiques e agogôs. Diálogos ora simples, ora complexos, em meio a levadas, subidas, breques, bossas, venenos e hang-looses, sempre compondo ritmos originais e empolgantes.

Sem dúvida, é um instrumento tipicamente carioca, já que tem em sua alma toda a malandragem descolada e informal da Lapa. É extremamente sedutor. Pego na baqueta levemente, como que não querendo pegar, toco em ritmo frenético como se fosse trivial, danço relaxadamente, sorrio, paro, espero e tudo recomeça.

Ao som do tamborim não dá para ficar parado. Seu som agudo e ensurdecedor entra pelos ouvidos e penetra em todo o sistema músculo-esquelético de quem está por perto. Uma verdadeira metralhadora: um, dois, três, quatro num carreteiro infinito. Quero você, quero você, quero você - grita o tamborim para a mulata bonita que samba sincopada com os olhos fixos no rapaz despretensioso e simpático. Isso é carnaval: ritmo, alegria, sensualidade e sedução.

Será que chove, será que chove? Me empolgo a qualquer hora e Esse é o bom! Cada dia mais, as pessoas sabem que com o Bangalafumenga sambo pela beirinha e de qualquer maneira pelas ladeiras do Cosme Velho ou com os Escravos na Praça Mauá hoje, amanhã e sempre.

Rio de Janeiro 30 de Julho de 2009

O temporal

Há dias não chove. Não sei o que há com esta cidade, com o país, com o mundo. Maldito efeito estufa! Está tudo tão seco! Como é possível depois de quase um mês de um sol sem trégua, de um calor senegalês, não termos uma gota da água sagrada dos deuses?

Já estava mais do que na hora. No fim da tarde, as nuvens negras cobrem o céu e uma brisa agradável chega às ruas. E com ela, vem um dos melhores cheiros do mundo: o cheiro da chuva. Sim, ela está chegando. Logo se sente os primeiros pingos, ainda fracos, porém constantes.

Dentro de pouco tempo eles tomam uma força extraordinária. Estrondos são ouvidos em volume ensurdecedor. Clarões e relâmpagos cortam o céu. O horizonte se turva e a natureza mostra todo o seu poder. As gotas, então, se tornam mais fortes e, quando sentidas, doem. Há quem goste de tomar banho de chuva, mas não é o meu caso. Gosto de ficar dentro de casa, de preferência de frente para o mar, próxima a uma janela bem ampla e em frente, uma varanda. E eu estou lá, protegida, assistindo ao grande espetáculo.

Se, por acaso, estiver ocorrendo uma ressaca no mar, melhor ainda. Para o programa se tornar perfeito só falta uma coisa. Engraçado o ser humano... Pode-se dizer que um grande temporal me excita, aguça meus sentidos. O olhar, a mão, o toque, o beijo, os carinhos, tudo fica mais intenso. Ter a sensação que o mundo está acabando, de que nada mais importa fortalece o aqui e agora. Perco o pudor e a timidez naturais, ouso. Então, o momento torna-se mais do que especial, é o último instante antes do fim do mundo. Tudo vale.

Febre

Simples assim. É o aumento da temperatura corporal. Tem inúmeras causas e por isso intriga e ameaça os médicos. De que o indivíduo sofre? Por que não consigo descobrir? Torna-se uma espécie de atestado de incompetência profissional. É uma ferida aberta no peito dos vaidosos deuses da arte de curar.

E, como tudo na medicina, quando não se encontra a causa, a culpa é sempre do mais fraco, a culpa é do doente. Diferente dos leigos, no meio médico não se diz que a pessoa teve ou apresentou febre. É mais cômodo falar que o paciente fez febre. Ora, que injustiça! Que covardia daqueles que exercem sua vocação através do cuidar! Agora, além de padecer da sua enfermidade, de sofrer com seus sintomas e tormentos, o paciente é também responsável por ela? Ele faz a febre. A fabrica. Ele é o responsável.

Mas não, as estrelas de branco não podem ser ofuscadas por um sintoma tão antigo e banal. Por isso, de cima de seu pedestal sagrado lançam mão de suas armas: antibióticos, é claro. Mas será que eles farão efeito? Será que debelarão a terrível moléstia? Não se pode transparecer a dúvida ou insegurança.

E, por isso, utilizam as palavras mais difíceis, as linguagens mais ininteligíveis, criam neologismos, verbos, enfim, uma nova língua, afinal, eles podem.

- Ele defervesceu? Já foi identificado o germe? Podemos desescalonar o antibiótico?

Não é nada fácil. É preciso muita criatividade para manter a pose e a impressão de que tudo está sob controle.

Sim, doutor, a febre cessou, parece que a doença está controlada. Imediatamente seu ego se infla novamente. Ele levanta sua sábia cabeça, outrora pensativa e sorri aliviado. Ganhou mais uma batalha. E então vem a pergunta:

- Até quando manter o tratamento?

A resposta exige ciência, muito estudo e também experiência. Ele já mostrou seu dom, todos reconheceram. Então ele pára por um minuto e pensa: manter por um número de dias múltiplo de sete e nunca suspender na sexta-feira.

Meu ritual

Antes de te encontrar eu me maqueio, e o ambiente tem que ser perfeito para esse ritual. Claro, iluminado, limpo, estéril, para que não contamine nada durante a minha viagem para dentro de mim mesma. Gostaria de ter aqueles espelhos de camarim com lâmpadas em volta e uma penteadeira cheia de estojos de maquiagem. É o meu enorme arsenal de guerra que uso para disfarçar minhas olheiras, corrigir minhas imperfeições, manchas, espinhas e também para valorizar meus traços e minhas virtudes.

Por favor, não pense que faço isso por você! Há tempos não faço coisas para os outros, pois cansei de tentar agradá-los. Vou em busca da minha emoção, do meu desejo e da minha satisfação.

Começo pela base, que homogeniza toda a pele, me dando um aspecto angelical de porcelana, porém sem vida. Em seguida me ocupo dos olhos. Aí, então, perco grande parte do tempo, pois é onde se encontra meu grande trunfo. Como uma coruja na noite da floresta, te observo, presto atenção.

Quero te absorver por inteiro, e tudo relacionado a você, te capturar com meu olhar fixo e faminto de animal selvagem. Quero te devorar, minha saborosa presa, com toda a força da minha sedução. Admirar cada expressão sua, cada movimento, te reparar, te sentir, te alcançar.

Lápis preto e rímel somente em cima para levantar os ânimos da minha alma cansada e aflita. Pintura à vontade até o terço distal das pálpebras superiores, quando... atenção! Território proibido por meus traços caídos e que, se inadvertidamente for explorado, me fará a mais triste das criaturas de todas as galáxias. Pois então, continuo. Agora, cores. Muito pó colorido claro no canto medial, próximo do nariz, que escurece à medida que corre para o lado.

No entanto, não me satisfaço só com o olhar, preciso exercitar o que tenho recentemente praticado, o falar. Gosto de boca rosa, jovem, saudável, carnuda, forte e brilhosa. Ela pede que seja ouvida, que seja respeitada, desejada e correspondida. Beijos calorosos, doces e longos. Que deixem registrados, em algum lugar da minha existência, um sinal de que estou viva. De que você me aceita, de que você quer receber meu amor e quer me dar o seu em troca. É isso, uma troca, portanto, com duas vias.

Agora, ilumino o rosto com o blush certeiro que sempre me livra de achar que fiz besteira, de que carreguei de mais ou de menos, escarlate balança. E então, o “grand finale”, que, na realidade, é a primeira coisa a ser notada, antes mesmo de me ver você já me reconhece. No entanto, não é tarefa assim tão fácil estimular o olfato alheio. Dependendo da hora do dia ou da noite, do estado de espírito e do humor, uso diferentes perfumes. Antes de sair, me perfumo toda para você, dando ênfase, é claro, para a região do pescoço, pois será a primeira a ser abordada no cordial cumprimento na hora da chegada.

Agora estou pronta para te saborear, para ser amada e para ser feliz. Quero ser notada, fazer diferença na sua vida, quero ser importante. O que te peço não é muito, veja bem: apenas que você seja amável, cuide de mim, se preocupe em me agradar, saiba meu nome, lembre do meu aniversário e dos encontros marcados, que você abra seu coração para mim, me aceitando e me permitindo te descobrir. Te aceitarei também e você será assim como uma marca bonita na minha pele, uma delicada tatuagem, da qual lembrarei sempre com carinho e consideração.

Rio de Janeiro, 03 de Outubro de 2009

A caneta como instrumento libertário

Pequena, pesada, preta com detalhes prateados. Esferográfica azul, macia. Metade do seu corpo gira e ... voilá! Pronta para usar. Sobre o que escrevo? Qualquer coisa. O tudo. O nada. O que passaria despercebido, o que de mais importante há no ser, o cerne da questão. O que representa? A estruturação do raciocínio de quem estava completamente sem norte, de quem pensava em um milhão de coisas de uma vez. A calmaria depois do furacão. A reconstrução.

- Calma, eu digo para mim mesma, vamos ver se consigo me expressar.

Me impressiono com o resultado. Nem eu sabia que era capaz. Gostei. É a valorização do eu. As questões agora são palpáveis na forma de um título e algumas linhas. Esses papéis fazem parte de mim e eu pertenço a alguma coisa. É uma das atividades mais solitárias, mas me sinto de certa forma acompanhada. De quem? A quem interessaria? Não importa. A mim mesma.

Escrever no computador? Nem pensar! Primeiro que não teria meus manuscritos. Qualquer pessoa poderia escrever meus textos. Perde um pouco de mim. E, nesse momento, quero me descobrir por inteira. Segundo que tem a questão do tempo, que seria diferente. Enquanto escrevo estou pensando, tudo em harmonia, e as idéias surgem naturalmente. Terceiro que posso escrever em qualquer lugar. Na cama, no sofá, na mesa. Não dependo de energia, memória, antivírus, pane geral... estou imune a tudo. É a liberdade plena.

São quatro da manhã e fui acordada pelas minhas idéias. Tenho que me levantar e despejá-las rapidamente no papel. Não consigo dormir. Estou na cama sozinha, nua. Estou preocupada. Amanhã, digo, hoje tenho que acordar cedo.

É inevitável. Me levanto, pego o caderno vermelho e... ah, meu Deus, perdi! Onde está? Subitamente meu coração palpita e começo a procurar. Não seria capaz de escrever com mais nenhuma. Não da mesma forma, fluência, como que numa conexão direta cérebro- coração- mão- tinta. Só com ela. Onde está? Ufa! Debaixo do travesseiro. Que bom! E respiro mais aliviada. Posso prosseguir com meu instrumento libertário. Posso dormir em paz.

Viramunda

Não sou Anne Frank, mas tento, por meio desta espinhosa missão, falar de minhas aventuras e desventuras no velho, que para mim é novo, mundo. Não é exatamente um diário, porque não tenho nem paciência nem expertise para tal. Não narro minhas peregrinações, são apenas impressões sentidas por mim, um ser recém-nascido de um ventre mudo, ávida por experimentar: Daniela Viramunda. Meu novo sobrenome é uma respeitosa alusão a Geraldo Viramundo, personagem célebre da obra-prima de Sabino, que me acompanha e com quem me identifico enormemente.

Peço desculpas ao leitor não habituado à minha maneira de escrever. Já antecipo que pode ser uma leitura cansativa porque o que quero dizer vai além do que o que está escrito e depende da colaboração e sensibilidade de quem lê. Não esqueço do que aprendi com uma professora muito querida: “escrever é cortar palavras”. Porque nem tudo pode ser explicitado de maneira óbvia, para que as palavras não esmaguem e matem as entrelinhas. Preciso preservar o frescor que sopra nas entrelinhas e nos torna mais leves.

Apesar desta professora, nunca fiz curso de redação, ou recebi qualquer instrução profissional. Sou, por assim dizer, uma auto-didata. Escrevo de ouvido. Na tentativa e erro, aprendo comigo mesma, tentando me expressar.

Pois então, me lanço ao meu destino nômade de viajante, emigrante, visitante, passante. Sempre partir e nunca chegar. Para onde vou, afinal? Como ciganos, caixeiros-viajantes ou marinheiros-mercantes, tento seguir minha vocação peregrina e conhecer o que existe, ampliando meu horizonte e me tornando cidadã do mundo. Sigo os conselhos de Paulinho da Viola: “as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”.

Inicio minha jornada desbravando a medieval Bavária. Os castelos, reis, cavaleiros e armaduras me remetem a uma época de muitas guerras, tortura e sofrimento. A religião como questão central e a música como refinado prazer. Compartilho de tudo isso com esses desconhecidos habitantes antepassados. Minha fé em Deus, que está em tudo, minhas armas que manipulo ainda sem destreza para me defender de meus inimigos e de mim mesma, que teima em me sabotar. Tenho que cravar um punhal certeiro no peito dela, que na véspera da viagem, sonha com o doloroso e imutável passado que insiste em rondar e limitar as possibilidades do presente e futuro. Porém, apesar dos pesares, tenho a música em meu coração, que suaviza tudo ao meu redor. Os violinos de Mozart se tornam familiares e despertam meu interesse pelo erudito mundo da ópera. Quem diria, eu, que vim da escola do samba, degusto com muito prazer de “La Bohème”, de Puccini! Importantes reencontros, agradável convívio e aprazível estadia. Hora, portanto, de mudar.

Parto de trem para a Boêmia, onde gozo dos prazeres do líquido fermentado de cevada, malte e lúpulo. Muitas opções, muitos sabores e sempre em generosos recipientes. A terra- natal da cerveja é mesmo surpreendente, com toda sua arquitetura e história. Suas cem cúpulas e tudo tão próximo e tão acolhedor... Também te recebo, Cidade-Luz do Leste, e me arrisco no seu impronunciável idioma. Gente bonita e simpática. Começo a entender seu funcionamento, disposição geográfica, transportes e... já é hora de partir.

A paisagem da janela é um espetáculo a parte. Interesso-me, em particular, pelos rios. Será que me lembro de todos? A ver: Isar, Danúbio e Moldávia. Ainda virão Spree, Amstel e Sena.

Descubro que os espertos e oportunistas não estão somente no Brasil e é preciso ter atenção e informação sobre tudo, e aprender a não confiar.

Próxima parada: a cosmopolita, moderna e histórica capital alemã. Quantos acontecimentos já ocorreram sobre este solo, quanto sangue derramado, quanta vontade de viver! Combustível para a impressionante reconstrução. Passo a valorizar a liberdade ainda mais e a perceber como é cruel e maravilhoso o mundo em que vivo. É a dualidade da vida em cada praça, monumento, igreja ou museu. Nem o frio de -5º. C, nem a chuva de granizo, nem os dedos e o rosto dormentes tiram meu prazer de ser. De decidir meu destino ali na hora, de descumprir os meus planos de uma hora atrás e de me permitir exercer minha individualidade. Impressiono- me com a independência dos europeus e quero um pouco dela para mim, uma tupiniquim de fraldas, que engatinha rumo ao amadurecimento. Cadeirantes e cegos se deslocando normalmente, trabalhando e se divertindo. Idosos com gigantes mochilas de tracking e bastões sempre prontos e dispostos para mais uma caminhada. Não é possível que eu não consiga!

Para alimentar a alma, nada melhor que um concerto filarmônico sob a regência de um empolgado maestro e a companhia de uma excelente e descabelada violonista. Quanta astúcia, quanta grandiosidade, quanta perfeição! Dentro daquele enorme prédio moderno os problemas se tornam pequenos e sem importância. Mais um dia de andanças e sigo o caminho dos trilhos.

Neste momento, devo fazer uma pausa para dizer uma coisa. Só quem já passou por isso vai entender o que eu vou dizer agora. É como eu me sentia no início da viagem e como me sinto agora. Eu me sentia como se eu mesma tivesse apertado o botão da descarga do banheiro químico do avião, e, subitamente tudo o que existia dentro de mim tivesse sido sugado para um buraco negro e eu estivesse oca por dentro. Minha pele se colabou com o efeito do forte vácuo e formava a só superfície. Era extremamente difícil e asfixiante viver nesse ínfimo espaço virtual. Ao longo da viagem, fui preenchendo o espaço interior com o que encontrava de interessante no caminho. Então fui juntando cultura, arte, música, história, sociedades, línguas, estilos de vida, modos de pensar dos outros, minha reação a tudo neste meu delicioso e doce recheio. Um enchimento feito de diversidade e novidades. Agora, tendo alguma coisa concreta que alargue meu peito e me deixe respirar fundo, posso me sentir mais confortável comigo mesma, mais segura estando somente na minha companhia. Desfrutando os prazeres do ser. O quê? Eu, agora. Hoje, eu sou a estrela e minha hora chegou! Não sou como Macabéa que aceita a maneira como é tratada por Olímpico, nem espero que desça dos céus a figura idealizada do estrangeiro salvador, Hans. Não espero nada de ninguém, o que vier, aceito de bom grado, pois lucro é.

Mas, é claro, nem tudo sai como esperado e tenho que contornar dificuldades, resolver problemas surgidos neste momento e enfrentar o medo do desconhecido. Não se pode fugir do medo. Tenho é que aprender a conviver e controlar este sentimento tão ansiogênico quanto paralisador. Como aliada, tenho a razão, que me dá a melhor solução e me acalma baseada na realidade dos fatos. Busco acalanto em mim mesma, nesta retro-auto-alimentação salutar.

Sigo neste trem, certamente mais moderno que a locomotiva de ferro que foi corajosamente parada por Geraldo Viramundo em Rio Acima. Apesar do conforto e da velocidade, dez e meia longas horas separam as duas cidades. Isto porque houve um atraso de uma hora no primeiro trem, que comprometeu o segundo trecho da viagem. Paciência! O que importa é chegar e o albergue me garante que meu quarto espera por mim. Nessa vida, as dúvidas são tantas... Como é bom ter certezas!

Ao chegar na Veneza do País-Baixo, tenho certeza de estar numa cidade encantadora. Seu casario de tijolos vermelhos e pretos com janelas e portas brancas, às vezes vermelhas, é extremamente simpático, cortado pelo labirinto de canais e uma legião de barcos, alguns na realidade, residências. Como é bom andar a pé ou de bicicleta por suas pitorescas ruas. Sonho da pequena Anne, segundo seus textos, e concretizado por mim. Os desejos da menina escondida no anexo são nossas possibilidades de hoje. Aproveitemos, então! Vamos correr por essas vielas, gritar, dançar, cantar, fazer muito barulho, sentir o aroma das tulipas recém- colhidas e viver. Aprecio as flores impressionistas e impressionantes nas telas do gênio incompreendido e solitário. Uma explosão de cores e traços que não buscam a perfeição e sim a tradução do mundo segundo a sua ótica. O mundo era difícil demais para ele, e, por isso, desistiu. Eu, no entanto, não desisto de tentar a vida, a alegria e o amor. Por isso, vamos em frente, pois ainda há muito por vir.

Sob o olhar atento de Egon Shiele no auto-retrato que enfeita a capa do caderno, prossigo protegida rumo a Cidade Luz, para o tão esperado reencontro. Gosto de tudo aqui, especialmente das ruas e dos museus. No primeiro dia, me divirto com os surrealistas, que, com seus bigodes milimetricamente afinados, elevados, retorcidos e espetados nos mostra que um novo caminho é possível. A sensualidade engraçada e provocadora como instrumento fundamental da mudança. Porque há de haver espaço para o desejo, o estranho, o diferente, o feio, o improvável e o delírio. Que segredos escondem as gavetas do ser humano? Como funciona um relógio derretido? Homem invisível, homem sem cabeça, mão sem corpo, o que a imaginação permitir... Quebrar as algemas da realidade e sonhar. Sonho um dia poder fotografar decentemente as lindas estátuas do escultor que embelezam seu ensolarado jardim. Abençoadas pela Torre e pelos Inválidos, vocês são abençoadas, obras-primas, pois traduzem a força, movimento e expressão do homem. Estátuas de bronze que transmitem sentimentos, ações, cheiros e sons. Isso é arte, afinal!

Arte espalhada nos prédios, jardins, torres, igrejas e pontes. Até parecem terem sido projetadas de maneira a se alinharem formando perfeitos cartões-postais. Uma cidade em que cada esquina esconde uma deliciosa surpresa: café, lojinha, praça, livraria, restaurante... Onde a retrô art-nouveau floresce, cresce e enobrece os olhos de quem aprecia suas moças-donzelas, frutas, folhagens, espelhos e formas geométricas.

Mas será que a vida aqui é tão diferente da brasileira? Vejamos... a feira livre é bem parecida, com feirantes oferecendo seus produtos em alto som, descontos, amostras-grátis e gracejos para senhoritas. Vendem também produtos incomuns nestes mercados no Brasil, como ítens de beleza, limpeza, chocolates e balas, mas, em geral, se assemelham. Assim como se assemelham os pedintes nos ônibus e metrôs, em seus quase-repentes, que narram quem poderiam ser, quem são e pedir qualquer trocado para a difícil subsistência. O trânsito de carros é mais caótico que no resto do continente, mas, sem dúvida, é mais civilizado que o brasileiro. Ainda não me acostumei a passar na faixa de pedestre, mesmo o sinal estando aberto para mim! É a cultura do desrespeito que ainda trago comigo, a lei do esperto. Logo eu, que de esperta, não tenho nada, boba que sou! E usufruo de minhas vantagens e desvantagens por isso.

No meu último dia da viagem já estou cansada física e mentalmente, desejosa de voltar. Como meu vôo é somente à noite, tiro ânimo de não-sei-onde e aproveito o dia para me despedir da cidade com longas caminhadas. Começo, então, pelo gigantesco e louvado museu-castelo-palácio, que já havia visitado em outra oportunidade. Meu tempo é curto e não admite que eu fique na quilométrica fila. Por isso, dessa vez não vi a enigmática de Da Vinci, contentei-me em apreciá-lo só por fora. O tempo ajudou bastante e foi um agradável passeio pelos jardins, avenidas e praças até chegar ao triunfal arco. Com meu iPod nos ouvidos e máquina na mão me divirto descobrindo ângulos, caretas, placas, carros,... E eis que chego ao auge da independência: tiro fotos de mim mesma, não preciso de ninguém nem para isso!

Adeus, cidade dourada, cidade amada, um dia hei de voltar, aprofundar meus laços contigo e fazer parte de ti. Que eu possa preservar essa boa-aventurança, essa paz interior que construi nesses vinte e seis dias, e fortalecer a minha poderosa fragilidade. Por hora, meu desafio é conseguir fechar as malas que estão lotadas de lembranças de todos os lugares por onde passei, e seguir meu retorno para a minha querida Cidade Maravilhosa.

Europa, de 03 a 27 de Outubro de 2009

Sangüíneo

Hoje atendi um homem jovem. Só mesmo uma doença muito grave e aguda para deixá-lo naquele estado. Completamente fraco, com fortes dores em todo o corpo, era pálido como o mais alvo papel. Toda a força e juventude não o livraram de seu destino. Seu sangue era doente, mas por quê?

- É preciso fazer uma ponta de dedo.

Gosto dessa expressão. Sempre me vem na cabeça a imagem de uma bailarina magra e delicada, equilibrando-se na ponta dos pés em suas sapatilhas mágicas. Esse exame ajudará a descobrir o que há de errado. Incrível seu significado, pois é pela ponta dos dedos que se recebe a energia. E é através dela que nós, médicos, podemos palpar uma ponta de baço ou o rebordo do fígado.

Uma espetadela e pronto. A gota gorda e escarlate está lá e se desmancha por capilaridade quando tocada pela lâmina aguda e fria. Rapidamente ela é distendida e forma um tapete fino de sangue sob a forma de uma chama de vela. Os corantes são prontamente misturados numa alquimia artesanal e particular. Muito simples e rápido. Lá estão elas! Miseráveis células imaturas, monstruosas e aberrantes que se multiplicam descontroladamente paralisando sua produção sangüínea. Sangüínea. Musical, não acham? O trema já acabou, mas me recuso a deixar de usá-lo. Nossa língua é tão bonita, pro inferno com a reforma ortográfica!

Como qualquer leigo, ele não faz idéia do que está acontecendo. Como dar a notícia? O que dizer exatamente? Não podemos prometer a cura, mas temos que lhe dar esperanças. Qual a melhor terapia? A doença é fatal, mas pode-se morrer também do tratamento. Pobre diabo!

No início, todos se desesperam, como que fadados ao terrível e irremediável fim. O passo seguinte é depositar todas as esperanças no tratamento oferecido, como se pudéssemos matematicamente prever o futuro. Nada lhe pode ser garantido, trabalhamos com probabilidades e não se sabe o que acontecerá. A doença irá remitir? Se remitir, se manterá silente? Poderá recair? O tratamento pode funcionar, mas e seus efeitos colaterais a curto e a longo prazo? Qual será seu benefício na sobrevida e na qualidade de vida? Quantas perguntas...

É difícil para o paciente raciocinar com tantas variáveis e optar por alguma coisa, então ele confia no médico. É um peso grande e uma dedicação gigantesca, não se pode negligenciar nada. Um simples sintoma pode mudar tudo. É uma relação muito forte e a vida daquele homem tão moço e robusto depende desesperadamente de mim. Não posso abandoná-lo, meu compromisso é com ele e não com a cura. Tenho que lhe garantir ao menos conforto.

Ele pode não saber exatamente de nada, mas sente e compreende quando alguma coisa não está indo bem. Protege-se em sua ignorância e deixa a vida caminhar. A falta de conhecimento muitas vezes é salutar. Permite que simplesmente se viva sem julgamentos e que se aprenda sempre. Liberta-nos da ilusão do pseudo-conhecimeto como verdade absoluta. “Só sei que nada sei” já dizia Sócrates. O paciente, portanto, sabe mais do que qualquer médico, afinal, ele é o doente.

Rio de Janeiro 17 Junho 2009

Fotografias

Escrevo por necessidade, para sobreviver. É uma atividade vital como outra qualquer: respirar, comer, beber, dormir... Mas, afinal, qual é a minha matéria-prima? O que está ao meu redor. Como uma câmera fotográfica, eu registro, através dos textos, o que vivo e dou minhas impressões sobre o mundo.

Sinto-me uma espécie de catadora de lixo, que sabe reconhecer as virtudes do que parece inútil e sem valor e o recicla depois. Dou cintilância ao apagado e o transformo em belo.

Como fotografar o sentimento? Utilizando as palavras e a pontuação escolho o ambiente, luminosidade, ritmo, tensão e humor do texto. Difícil tarefa! Exponho minhas entranhas quentes e macias para meus seletos leitores. Por que isso? Para dividir com eles o horror que é viver e a maravilha que é nascer e desabrochar.

Gostaria de poder escrever mais solta e fotografar o instante mais fugaz, o silêncio, o perfume, a ternura e o amor. É preciso valorizar o amor, que parece tão impossível. Por que existe essa correlação tão direta entre o possível e o impossível? Quando se pensa que alguma coisa nunca acontecerá, e se despreocupa, portanto, só então é que começa a acontecer. Enquanto for possível, nada acontece. Quero fotografar o impossível, pois apenas ele me tranqüiliza, me entende e me liberta.

Rio de Janeiro, 05 de Setembro de 2009

O meu patrimônio

Hoje acordei, olhei para a janela e vi o mundo de uma maneira nova. Aqueles morros, aqueles prédios, cada árvore, cada carro passando, cada pedra portuguesa cravada nas calçadas, o sol, o cristo de braços abertos, o bondinho do pão-de açúcar, tudo enfim, era meu. Era como se eu enxergasse a realidade pela primeira vez através de meus próprios olhos, e não por outra pessoa.

Então, prontamente, peguei minha recém comprada bicicleta, dessas simples, femininas, com cesto na frente, leves e práticas e fui desbravar o meu mundo. Nunca foi tão fácil andar de bicicleta! Eu determinei o que iria levar na mochila, como iria sentar no banco, tracei o meu roteiro, subi e desci na calçada quando bem entendia, comemorando minha liberdade total. Uma agradável sensação de auto-suficiência, saúde, ecologia e bem-estar.

E sentia que, pelos meus poros dilatados pelo calor do esforço, saía meu suor triste e sofrido, ainda por estar superando uma dor necessária para o amadurecimento. Às vezes me pergunto se não enlouqueci, se tudo o que sinto não é fantasia, mas sei que não.

Como uma esponja seletiva, absorvo dessa realidade tudo de bom que ela gentilmente me oferece. Cada canto de passarinho, cada raio de sol, cada sorriso tímido de criança, cada barco de remo na lagoa, cada onda quebrando no mar e criando uma barra de espumas brancas.

Bebo uma água de coco e já está na hora de voltar. Antes disso, faço uma pequena pausa para admirar o meu patrimônio. Como o dia hoje está bonito! Fecho os olhos, deixo que o vento refresque meu rosto, enrolo meu dedo em um anel de cabelo e penso que para atingir essa lucidez calma das coisas não é preciso muito, apenas se permitir sentir.

Rio de Janeiro, 28 de Setembro de 2009