sábado, 1 de outubro de 2011
Um coração de porcelanato fosco
Todos os dias Maria Luisa espera por Guilherme, isso há mais ou menos um ano. É o combinado, estudam na mesma sala da faculdade e moram no mesmo bairro. Guilherme, mais conhecido como Guiga, tem uma BMW que ganhou do pai assim que passou na Universidade, é bonito, faz muito sucesso com as meninas e passa mais tempo na academia do que sua mãe gostaria. Não custa nada a ele dar carona para a angelical Malu, primeira aluna da turma, famosa por seu caderno completíssimo que é o mais procurado na xerox do Centro Acadêmico, principalmente em vésperas de provas.
Às sete horas da manhã ele passa e dá tempo suficiente até chegarem ao Campus decadente da faculdade. Atualmente são amigos, as conversas se alongam muitas vezes até depois do horário da aula e não é raro encontrá-los em algum boteco da redondeza. Conheceram-se no primeiro dia do trote, em que ficaram no mesmo grupo, pintados da cabeça aos pés de tinta guache, seminus, pedindo trocados em um sinal da Tijuca. Poucas semanas depois, com o dinheiro arrecadado, os alunos veteranos organizaram uma festa de confraternização de boas vindas aos novos colegas, a chopada. O evento, anunciado nas rádios e divulgado em todos os corredores e salas de aula, não tinha como não estar cheio.
Malu chegou cedo, estava com sua blusa mais decotada, passou no banheiro depois da aula para dar aquela caprichada na maquiagem e ainda conseguiu pegar cerveja de graça com certo conforto. Como Guiga era amigo dos veteranos, conseguia continuamente bebidas mais pesadas mesmo depois de o espaço estar intransitável, o chão absolutamente imundo e molhado de urina misturada com a água derretida do gelo dos isopores.
O que tocavam não era exatamente música, mas um funk alternado com axé que fazia sucesso na época. Então, Guiga, que já tinha trocado algumas palavras com Malu, resolve se aproximar na penumbra do salão. Apoiou seu braço de músculos contraídos e torneados em frente do rosto de traços finos e assustados da menina e declamou alguns elogios, até que sinceros. A moça ficou sem-graça e tentou desviar a conversa, qual não foi sua surpresa quando Guiga levantou a própria camisa perguntando se ele não era bonito o suficiente, se não merecia seu beijo. Ela sorriu e beijaram-se, por fim. Após o beijo, com direito a palpações enérgicas e demoradas, ela tomou fôlego, puxou sua saia jeans para baixo, realinhou a blusa branca e ajeitou o cabelo. Ele não conseguia olhar fixamente para nada, estava bêbado, enjoado e quase em transe com aquela música alta, luzes e cheiros.
Prontamente, Guiga se desculpou, deixou Malu sozinha e virou para o canto da parede, onde o vômito ajudou a colorir ainda mais o chão de restos de papelão amarelo. A menina ficou sem saber o que fazer, tentou ajudá-lo, mas ele foi grosseiro e recusou. O resto da noite foi um festival de bizarrices, em que Malu, preocupada, não se divertia e voltou para casa incrivelmente triste. Ao longo do tempo, eles reataram a amizade e Guiga fazia questão de mostrar consideração e respeito. Ele tinha algo de sincero e ingênuo que fazia com que ela gostasse de estar ao seu lado.
Já são sete horas e quarenta e cinco minutos e Guiga ainda não chegou. Não atende o celular e Malu começa a pensar em pegar um ônibus para não chegar ainda mais atrasada. Em frente ao ponto de encontro há uma loja de material de construção, cujo dono simpático, o senhor Domingos, puxa conversa com a moça e lhe oferece ajuda. Ela não procura nada em especial, diz apenas que aguarda um amigo e só está olhando para passar o tempo. Seu Domingos pergunta se Malu conhece o piso de porcelanato, muito vendido atualmente no Brasil. Ela diz que já ouviu falar, que acha que é o que tem em casa. O senhor pergunta se é o polido ou fosco. Ela diz que é o polido, pois sua mãe diz que é o mais bonito. Pronto: o que ele queria ouvir. Ele esclarece que o Brasil é campeão mundial de porcelanato polido, que não faz o menor sentido, levando em consideração o material e a maneira como ele é feito.
Ao entrar no forno, aquela espécie de cerâmica crua tem uma propriedade especial de derreter suas partículas, sem exatamente derreter, e com isso, quando sai do forno, seus poros estão completamente fechados. No processo de polimento, o material tem alguns poros abertos, onde entram sujeiras. Seu Domingos diz que não é culpa da mãe da menina, que é a cultura brasileira que privilegia a beleza, e que aqui a imagem de limpeza infelizmente está atrelada ao brilho. Falsos conceitos e uma sociedade de aparências.
A inesperada conversa serviu mesmo para passar o tempo e Guiga logo chegou. Malu se despede carinhosamente do seu novo amigo. O rapaz mais uma vez se desculpou pelo atraso. Ficou estudando até tarde, esqueceu de ligar o alarme e perdeu a hora. No caminho, elogiou seu corte novo de cabelo, o perfume doce e suave de sempre e suas notas na última avaliação. O coração de Malu bate forte, ela procura não olhar para ele durante a viagem, disfarça, comenta o outdor que passou, a música do rádio e os estragos da chuva da semana na cidade. Ela não quer, mas percebe que gosta cada dia mais do playboy mais galinha da faculdade. Suas amigas já perceberam, e dizem que ela tem que se abrir para o rapaz, que tem que dar mais uma chance. Ela olha para o lado e vê no banco uma caixa de fósforo do motel dos dois ursos da São Clemente. Sabendo muito bem o motivo do atraso, tem ainda mais raiva das cantadas baratas que insiste em jogar pra ver se cola, como se migalhas bastassem para ela. Lembra do falante senhor Domingos e pensa que, pelo menos para o bonitão da turma, seu coração é de porcelanato fosco. Ele que encontre a beleza em seu estado natural. Quando a temperatura sobe, seu corpo derrete sem se derreter, ela respira, se concentra e tem seus poros completamente fechados.
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Ficou lindo o blog! Poxa, como vc conseguir fazer essa transformação?! Muito bom! E o conto também é ótimo, já comentei lá no blog do clube da leitura!
ResponderExcluirConsegui mudar com a ajuda da Dani num domingo a noite via Facebook. Me diverti mudando cores, temas e letras. Também gostei! E vc, tem blog? Valeu, querida. Beijão
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