sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Voando alto
Paula tem trinta e cinco anos, já passou por alguns namoros complicados, incluindo um usuário de drogas ilícitas, um rapaz que sofria de ciúme patológico, outro extremamente egocêntrico e seu último relacionamento foi um noivado desfeito dois meses antes do casório. A união seria com um freqüentador da Igreja Assembléia de Deus, de quem escondia seus relacionamentos anteriores, mas que mesmo assim insistia em rotulá-la de pecadora, transgressora e imoral.
Sua família e amigos lhe deram suporte, dizendo que ele não era homem pra ela, que fora melhor assim, que a separação é sempre um processo sofrido, mas ainda bem que no seu caso foi precoce, que ela rapidamente encontraria alguém com quem dividir a verdadeira felicidade.
Em suas férias, Paula organizou uma “viagem de meninas” com duas amigas bem próximas. Durante a viagem iriam encontrar outras que já estavam pela Europa e iam se juntar ao time das solteiras. Estabeleceram o itinerário, compraram passagens aéreas em uma combinação um pouco estranha para conseguir um preço melhor, reservaram albergues pela internet e tiveram noites e noites regadas a Champagne, gargalhadas e pop music, com direito ao clássico “Girls Just wanna have fun” da Cyndi Lauper. Foi nesse clima de total desapego e aventura que fizeram as malas e chegaram no início da noite ao Galeão.
Estavam ansiosas com o vôo, com o frio em Paris, com programas, museus e compras. Não paravam de falar e mostrar reportagens de revistas e guias de viagem que pegaram emprestados na véspera com amigos. Viajar em grupo é complexo, e com elas não foi diferente, porque enquanto uma queria ir ao banheiro, a outra comprava um lanche e Paula não podia deixar de passar no Free Shop pra garantir o Make-up importado.
Entraram no avião, seus lugares eram juntos, sendo que a fileira era de quatro, e a poltrona do corredor ficou vaga. Pouco tempo depois chega João e mais dois amigos, que iam também passear na Cidade Luz. Os amigos ficaram do outro lado do corredor e o lugar de João fora estrategicamente escolhido já que era de mais fácil movimentação. Ele tinha medo de avião e havia tomado uma superdosagem de Rivotril® para aceitar a viagem. Suas mãos suavam frio, o coração estava na boca e quando as portas da aeronave foram fechadas e acenderam os sinais de apertar os cintos, ele, que tinha falado um tímido “boa noite”, agarrou o braço de Paula com força contra seu peito, fechou os olhos trêmulos e emudeceu.
Ela não sabia o que fazer, perguntou algumas vezes o que estava acontecendo, mas não teve resposta. Chamou a aeromoça, mas ela estava ocupada assim como o resto da tripulação. Paula, então tentou parecer normal, puxou conversa com os amigos de João, que foram simpáticos e a tranquilizaram dizendo que não se preocupasse, que esse comportamento era normal e que já já passava. Realmente foi isso que se sucedeu, e depois de alguns minutos de vôo, conseguiu reaver seu braço um pouco dolorido com um sorriso amarelo, mas com brilho nos olhos. Está melhor?
Olha, mil desculpas pelo meu comportamento. Por favor não fique assustada, é que tenho pânico de avião e você não imagina o esforço que é para mim fazer uma viagem como essa. Me chamo João, prazer. Paula não sabia o que exatamente fixava seu olhar, se eram os olhos negros rasgados ou o jeito doce como se explicava e se abria, contando suas fraquezas para uma estranha.
Imagina... entendo perfeitamente, é que tomei um susto mesmo. Que bom que está melhor agora. Tenho problema principalmente com pousos e decolagens. É claro que se ficasse pensando no avião o tempo inteiro não iria melhorar, mas acho que temos assuntos mais interessantes pra falar, não acha? Ah, claro que sim. Você é do Rio? Estou notando um sotaque estranho? Não, sou de Juiz de Fora, mas meus amigos são cariocas. Eu já conheço Paris, é a minha terceira vez, mas meus amigos ainda não. É sempre bom voltar porque deixei muitos lugares legais de fora dos roteiros anteriores.
Das doze horas de viagem, passaram mais da metade numa conversa só, que abordou trabalho, amigos, filmes, música e família, intercalada com alguns momentos de cochilo no ombro vizinho. Já amanheceu, tinham acabado de tomar o café-da-manhã e se aproximava a hora de pousar. As nuvens de algodão em breve passariam pela janela anunciando a chegada, mas Paula estava tensa, pois não sabia como João iria reagir dessa vez. Posso te ajudar de alguma maneira? Você me daria sua mão? Claro, já dei o braço inteiro da outra vez, né?
A forma como segurava sua mão era tão especial, como se fosse uma jóia. Fechou os olhos para sua concentração e só pensou em coisas boas e positivas, que iam lhe acalmando, controlando sua respiração ofegante, lhe trazendo paz. Quando o avião tocou o chão, sentiram um solavanco normal da freada, mas ele não se abalou, como se sob meditação ou hipnose. Aquela pele fina, aquele perfume envolvente, aquela capacidade de só falar coisas inteligentes e interessantes afastavam qualquer sinal de ansiedade. Quando poderemos nos ver de novo? Não sei, podemos nos encontrar em algum dia, fazer um programa. O que acha? Acho que pela primeira vez vou subir na Torre Eiffel, vou gostar e se depender de mim, não desço mais.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Hamster não é rato
Pedro é um garoto de oito anos que tem as pernas magras, a voz fina e gosta de jogar futebol com os amigos no campinho atrás da sua casa. Como todos na sua idade, é um pouco resistente a higienes, travando sempre discussões com sua mãe para tomar banho e cortar as unhas e cabelos. Mora em uma casa confortável com seus pais e não tem irmãos.
A maioria de seus amigos estuda na mesma escola que ele, e sempre se encontram na hora do recreio. Não gostam muito das garotas, que passam o tempo todo fofocando pelos cantos e ouvindo alguma música boba da moda. Um belo dia, vindo transferida de outra cidade, entrou na sua sala Mariana, a menina que reinaria por toda a sua infância. Ficava encantado com seu corpo quase formado, seu jeito adulto de falar e sua energia de viver. Mariana sempre trazia novidades, principalmente às segundas-feiras.
A última delas foi seu novo bichinho de estimação, um hamster, que comprara da Feira de filhotes. Ela disse que depois da morte trágica do pintinho no ano passado, muito traumática para sua irmã mais nova Julia, ela tinha escolhido um animal que ficasse contido em um ambiente, e que o pequeno roedor era ideal. Como ela se divertia com ele! Esclareceu que seus dentes cresciam constantemente e precisava estar sempre roendo alguma coisa para evitar que crescessem demais. Contava que dava a ele uma dieta especial, não só com ração e água, mas frutas frescas, castanhas e vegetais. Esse era o segredo do Bolinha, que tinha energia para correr rapidinho naquele cilindro e que gostava de brincar de recompensas, aprendendo vários truques legais. Era realmente muito esperto o Bolinha, e às vezes ela até o tirava da gaiola para lhe fazer um chamego na barriga.
Pedro voltava para casa com todas aquelas histórias na cabeça, imaginando Mariana e Bolinha brincando. Pensava que ele também queria ter um bichinho que lhe fizesse companhia, afinal de contas seus pais trabalhavam muito e ele, por vezes, se sentia só. Um dia Pedro estava mexendo nos entulhos da casa dos fundos, que funcionava como depósito, procurando sua bicicleta meio enferrujada que tinha encostado em algum lugar, quando viu um movimento numa pilha de jornais velhos. Aproximou-se, afastou algumas caixas que estavam perto e viu um hamster bem parecido com a descrição de Mariana, só que cinza e um pouco maior.
A surpresa foi maior que o medo e ele simpatizou com o bichano. Lembrou-se da dieta recomendada pela amiga. Diferente de Mariana, Pedro criava seu hamster livremente pois sabia que sempre encontraria o amigo por ali quando o procurasse. Fez alguns brinquedos com panos e pedaços de madeira e se divertia vendo que ele fazia barulhos como se quisesse mesmo agradecer o carinho do menino.
Um dia quis fazer uma surpresa para Mariana e mostrar seu hamster a ela. Pediu ajuda ao pai para deixar o cabelo um pouco mais bonito, como se tivesse acabado de sair do banho. O pai sugeriu que passasse o mesmo gel que ele, que deixa o cabelo arrumado o dia inteiro. Perguntou aonde o menino ia e ele espondeu que ia na casa de uma amiga da escola. O pai riu e lhe deu um tapinha nas costas, esse é o meu filhão.
Às cinco horas da tarde da sábado, ele tocou a campainha de Mariana com uma caixa de sapatos embaixo do braço. Quem abriu a porta foi a sorridente Julinha, que logo foi chamar a irmã. Mariana demorou uns dez minutos para chegar, não disfarçou a surpresa de ver Pedro ali na sua sala e não conseguia desviar o olhar de seu cabelo. Tem alguma coisa diferente com você, Pedro. O que houve com seu cabelo? Ah, sim, passei gel, meu pai falou que deixa mais arrumado, gostou? Não sei, está estranho, meio duro... E essa caixa, o que é?
Então, vim te mostrar meu hamster. Eu não sabia que você tinha hamster também. Nunca falou nada... É que tem poucas semanas que o encontrei na minha casa. Você encontrou um hamster na sua casa? Que estranho. E qual o nome? Chamo de Chico, e pelo visto ele gosta de comer as mesmas coisas que o Bolinha, só que ele é um pouco maior e é cinza. Olha que lindo.
Ah, que horror! Não acredito que você teve coragem de trazer um rato pra minha casa!!! Calma, Mariana, o Chico é um hamster diferente, só isso. Isso não é um hamster, é um rato, e hamster não é rato! Você é muito nojento mesmo, Pedro, você cria um rato em casa que pode te passar doenças, que anda no lixo, nos esgotos, eca! Você não sabe o que é um hamster, eles são branquinhos, limpos, criados em cativeiros e dóceis, e não esse monstro peludo. Vai embora daqui agora mesmo, não quero nunca mais falar com você.
Pedro desceu as escadas desolado, com lágrimas nas bochechas, ainda sem entender a reação de Mariana. Só porque ela tinha comprado o hamster dela de cativeiro, achava que o dela era melhor que o seu? Não é justo tratar os animais assim, ainda mais o Chico que ela nem conhecia direito. Não gostou do jeito como ela falou, como se ele não soubesse das coisas. Lembrou de uma conversa que teve uma vez com seu pai. Ele falava que as mulheres eram muito difíceis de agradar, ficavam nervosas com facilidade, que geralmente complicavam as situações, que os homens eram mais práticos, que era preciso ter paciência, e que ele entenderia isso com o tempo. Seu pai tinha mesmo razão e agora o que ele queria era esquecer essa história estúpida de hamster e rato, e que ainda dava tempo de encontrar o pessoal para uma pelada no fim da tarde. Voltou para casa com Chico, calado, cabisbaixo e dando pontapés no vento.
sábado, 1 de outubro de 2011
Um coração de porcelanato fosco
Todos os dias Maria Luisa espera por Guilherme, isso há mais ou menos um ano. É o combinado, estudam na mesma sala da faculdade e moram no mesmo bairro. Guilherme, mais conhecido como Guiga, tem uma BMW que ganhou do pai assim que passou na Universidade, é bonito, faz muito sucesso com as meninas e passa mais tempo na academia do que sua mãe gostaria. Não custa nada a ele dar carona para a angelical Malu, primeira aluna da turma, famosa por seu caderno completíssimo que é o mais procurado na xerox do Centro Acadêmico, principalmente em vésperas de provas.
Às sete horas da manhã ele passa e dá tempo suficiente até chegarem ao Campus decadente da faculdade. Atualmente são amigos, as conversas se alongam muitas vezes até depois do horário da aula e não é raro encontrá-los em algum boteco da redondeza. Conheceram-se no primeiro dia do trote, em que ficaram no mesmo grupo, pintados da cabeça aos pés de tinta guache, seminus, pedindo trocados em um sinal da Tijuca. Poucas semanas depois, com o dinheiro arrecadado, os alunos veteranos organizaram uma festa de confraternização de boas vindas aos novos colegas, a chopada. O evento, anunciado nas rádios e divulgado em todos os corredores e salas de aula, não tinha como não estar cheio.
Malu chegou cedo, estava com sua blusa mais decotada, passou no banheiro depois da aula para dar aquela caprichada na maquiagem e ainda conseguiu pegar cerveja de graça com certo conforto. Como Guiga era amigo dos veteranos, conseguia continuamente bebidas mais pesadas mesmo depois de o espaço estar intransitável, o chão absolutamente imundo e molhado de urina misturada com a água derretida do gelo dos isopores.
O que tocavam não era exatamente música, mas um funk alternado com axé que fazia sucesso na época. Então, Guiga, que já tinha trocado algumas palavras com Malu, resolve se aproximar na penumbra do salão. Apoiou seu braço de músculos contraídos e torneados em frente do rosto de traços finos e assustados da menina e declamou alguns elogios, até que sinceros. A moça ficou sem-graça e tentou desviar a conversa, qual não foi sua surpresa quando Guiga levantou a própria camisa perguntando se ele não era bonito o suficiente, se não merecia seu beijo. Ela sorriu e beijaram-se, por fim. Após o beijo, com direito a palpações enérgicas e demoradas, ela tomou fôlego, puxou sua saia jeans para baixo, realinhou a blusa branca e ajeitou o cabelo. Ele não conseguia olhar fixamente para nada, estava bêbado, enjoado e quase em transe com aquela música alta, luzes e cheiros.
Prontamente, Guiga se desculpou, deixou Malu sozinha e virou para o canto da parede, onde o vômito ajudou a colorir ainda mais o chão de restos de papelão amarelo. A menina ficou sem saber o que fazer, tentou ajudá-lo, mas ele foi grosseiro e recusou. O resto da noite foi um festival de bizarrices, em que Malu, preocupada, não se divertia e voltou para casa incrivelmente triste. Ao longo do tempo, eles reataram a amizade e Guiga fazia questão de mostrar consideração e respeito. Ele tinha algo de sincero e ingênuo que fazia com que ela gostasse de estar ao seu lado.
Já são sete horas e quarenta e cinco minutos e Guiga ainda não chegou. Não atende o celular e Malu começa a pensar em pegar um ônibus para não chegar ainda mais atrasada. Em frente ao ponto de encontro há uma loja de material de construção, cujo dono simpático, o senhor Domingos, puxa conversa com a moça e lhe oferece ajuda. Ela não procura nada em especial, diz apenas que aguarda um amigo e só está olhando para passar o tempo. Seu Domingos pergunta se Malu conhece o piso de porcelanato, muito vendido atualmente no Brasil. Ela diz que já ouviu falar, que acha que é o que tem em casa. O senhor pergunta se é o polido ou fosco. Ela diz que é o polido, pois sua mãe diz que é o mais bonito. Pronto: o que ele queria ouvir. Ele esclarece que o Brasil é campeão mundial de porcelanato polido, que não faz o menor sentido, levando em consideração o material e a maneira como ele é feito.
Ao entrar no forno, aquela espécie de cerâmica crua tem uma propriedade especial de derreter suas partículas, sem exatamente derreter, e com isso, quando sai do forno, seus poros estão completamente fechados. No processo de polimento, o material tem alguns poros abertos, onde entram sujeiras. Seu Domingos diz que não é culpa da mãe da menina, que é a cultura brasileira que privilegia a beleza, e que aqui a imagem de limpeza infelizmente está atrelada ao brilho. Falsos conceitos e uma sociedade de aparências.
A inesperada conversa serviu mesmo para passar o tempo e Guiga logo chegou. Malu se despede carinhosamente do seu novo amigo. O rapaz mais uma vez se desculpou pelo atraso. Ficou estudando até tarde, esqueceu de ligar o alarme e perdeu a hora. No caminho, elogiou seu corte novo de cabelo, o perfume doce e suave de sempre e suas notas na última avaliação. O coração de Malu bate forte, ela procura não olhar para ele durante a viagem, disfarça, comenta o outdor que passou, a música do rádio e os estragos da chuva da semana na cidade. Ela não quer, mas percebe que gosta cada dia mais do playboy mais galinha da faculdade. Suas amigas já perceberam, e dizem que ela tem que se abrir para o rapaz, que tem que dar mais uma chance. Ela olha para o lado e vê no banco uma caixa de fósforo do motel dos dois ursos da São Clemente. Sabendo muito bem o motivo do atraso, tem ainda mais raiva das cantadas baratas que insiste em jogar pra ver se cola, como se migalhas bastassem para ela. Lembra do falante senhor Domingos e pensa que, pelo menos para o bonitão da turma, seu coração é de porcelanato fosco. Ele que encontre a beleza em seu estado natural. Quando a temperatura sobe, seu corpo derrete sem se derreter, ela respira, se concentra e tem seus poros completamente fechados.
Casamento sem amor
quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Isolamento de contato
O ditador está de plantão
Robusto, se ocupa de todos
Como se por obrigação
Sem pedir ou mesmo agradecer
É cego para erros
É surdo para sugestões
É mudo para o acolhimento
É lento para mudanças
Discursa sobre o mundo
Hermético e seguro
Segundo o ângulo de sua janela
E sofre calado as injustiças
Como existir se dentro há uma voz que grita
E ainda não foi ouvida
Pois pegou o sentido errado
Rota de fuga, e não saída
Seda desejos, anestesia alegrias e entuba frustrações
O coração fraco, rachado, se esfacela
E às pessoas que mais ama
Dá alta à revelia
sábado, 23 de julho de 2011
Eu?
Acordei às sete da manhã e pensei:- O que estou fazendo? Como vim parar aqui? Não me lembro de nada que aconteceu nas últimas horas. Será que alguém me trouxe para casa? Será que tem alguém aqui comigo? Levantei e comecei a procurar, não achei ninguém. Eu estava somente de calcinha, vestido jogado ao lado da cama que ainda estava feita. Pegadas negras me acompanham no chão por onde passo. Como não tinha ninguém e a chave estava na porta pelo lado de dentro concluí que fui eu mesma que tranquei.
Menos mal. Brincos e pulseira no lugar. Ouço um barulho de água e vejo minha bolsa no tanque sendo molhada pela água corrente. Gelei. Será que fui tão burra a esse ponto? Graças a Deus tive a idéia de tirar o celular e a carteira com dinheiro e documentos de dentro dela, que ainda estava bem suja de vômito apesar da rápida lavagem.
Minha cabeça pulsa tão forte que pode explodir a qualquer momento. Uma náusea desconcertante me impede de fazer qualquer coisa que tenha um sentido, só consigo deitar e tentar lembrar o que aconteceu. Meu pé dói e noto que, não sei como, estou com um caco de vidro cravado na sola esquerda. Era uma festa de casamento, estava muito feliz, dancei a noite inteira. Bebi cerveja no início da festa e depois, vodka. Já devia ter aprendido a não misturar as bebidas nas festas de adolescentes que freqüentei, mas, enfim, cá estou eu num estado deplorável.
Ele me não tirou os olhos de mim a festa inteira. Depois de um mal estar inicial, fiz questão de cumprimentá-lo pra quebrar logo o gelo. Rápida conversa e eu tentei não demonstrar que dava muita importância àquele encontro, afinal depois de tanto tempo e de tudo o que ele me falou... Mas, pela manhã estava gravada uma mensagem dele me pedindo para ligar quando acordasse. Achei simpático, afinal de contas, se preocupava comigo. Disse que cuidou muito de mim, me deu água e doce, que eu estava muito mal, e que só não fiquei pior porque ele tirou um copo de uísque da minha mão e me colocou num taxi. Não sem antes me beijar calorosamente e ouvir da minha boca que tinha saudades e que ainda o amava.
E eu falei: - Duvido que estivesse bebendo uísque, tenha te beijado e ainda mais falado tanta besteira! Você está inventando...
O que realmente aconteceu eu nunca vou saber, fico apenas com minhas suposições do que eu seria capaz de fazer, do que ele seria capaz de falar e do que nós ainda poderíamos sentir.
A máquina de fazer
Quem nunca citou, em algum momento da vida, a famosa Lei de Murphy? É a máxima que fala que “Se alguma coisa pode dar errado na vida, certamente dará”. Os mais religiosos alegam que “Deus escreve certo por linhas tortas”, os sambistas que “não sou eu quem me carrega, quem me carrega é o mar”, e há ainda os amantes da astronomia que dizem que “ o destino está nas estrelas”. Cada um à sua maneira de se conformar com um fato desagradável.
Foi mais ou menos o que aconteceu comigo neste final de semana prolongado. Programei a viagem com antecedência, comprei os ingressos, reservei pousada, tentei me informar sobre os assuntos e autores mais interessantes, mas não deu. Estive na FLIP de 2011 e perdi a melhor palestra, pelo menos a mais comentada. Não por causa da bela e esperada autora argentina, mas do calvo, sensível e simpático luso-angolano, Valter Hugo Mãe.
Já tentei procurar no site oficial, Google e youtube, mas nem sinal... Fico imaginando como deve ter sido para ele estar ali naquele palco. O frio europeu no paraíso tropical deve ter sido estranho, o casario colonial provavelmente aproximou ainda mais os laços com as terras tupiniquins, novas cores, sabores e ares para seus pulmões. Inspiração para escrever uma carta tão simples e verdadeira que tocou o coração de todos. Brasil e Angola, jovens irmãs de sangue, filhas de um Portugal idoso e um pouco esquecido. Amor de pai, amor de filhas e todos falam a mesma língua.
Confesso que achei meio piegas o fato de ter chorado no palco, falado que está querendo ser pai e que escreve apenas com minúsculas, em uma pontuação particular. Mas entendo que todos somos frágeis, cafonas, emotivos e ao mesmo tempo corajosos. Que acompanhar novelas também é hábito de escritores famosos, que todos criamos fantasias sobre lugares e pessoas, que todos temos um amor de infância que não sai da cabeça não importa quanto tempo passe, que podemos sentir amor por um filho que ainda nem foi concebido, que nem todas as músicas que gostamos de escutar são de bom gosto, mas que nada disso importa e ao mesmo tempo tudo isso é essencial para a nossa identidade. Da imperfeição vem a humildade, e da realização, as lágrimas.
Certamente, ele já deve ter encontrado a mãe ou, considerando o fogo da mulher brasileira, mães para seus filhos, vendido muitos livros pelo país, ganhado fama de pop star, cansado do assédio dos fãs e da agenda lotada de compromissos e entrevistas. Sua vida não será mais a mesma depois daquelas ruas irregulares, não de conhecidas pedras portuguesas mas de calçamento pé-de-moleque, horizontes verdes e azuis e do sol brilhante da principal festa literária brasileira. Eu ainda não entendi a razão porque não fui àquela mesa na sexta-feira, talvez a encontre lendo seus livros, óleo otimista para a máquina de fazer sentimentos.
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Sobre unhas, cutículas e esmaltes
Nunca achei interessante essa coisa de pintar as unhas. É claro que ficam mais bonitas, mas para mim não faz sentido. Em primeiro lugar porque a pessoa ou vira escrava de salões de beleza ou tem que desenvolver técnicas quase contorcionistas que minha limitada coordenação motora não permite, para que consiga, enfim, fazer todos os movimentos com as duas mãos.
Além disso, fico muito preocupada com a esterilização dos alicates e pauzinhos de madeira. Todos os salões dizem que seguem as normas da Anvisa, que todas as clientes podem ficar tranqüilas, que é um lugar muito sério e respeitado, etc. Ok, continuo não acreditando. Quando olho um instrumento desses penso: e se eu soubesse que a última pessoa a ter suas cutículas retiradas por ele tivesse uma doença transmissível, eu confiaria no processo de limpeza e usaria mesmo assim?
Tudo bem, eu posso estar sendo paranoica demais, mas hoje em dia muias doenças são transmitidas assim, algumas hepatites por exemplo. E aquela aguinha nojenta para amolecer as unhas e peles? Não é à toa que muitas pessoas pegam micoses, vírus e bactérias até porque, no processo, estamos retirando uma importante barreira física à entrada de microorganismos: a cutícula. A vilã da maioria das mulheres é empurrada, raspada e extirpada em suculentos e dolorosos bifes pelas profissionais menos habilidosas.
E na hora de secar todo o cuidado é pouco para não bater em nada nem borrar o esmalte. Para se ter noção como estou por fora do assunto, meu esmalte preferido é o “misturinha”, que não é fabricado há séculos. Informo aos desavisados que atualmente o mais parecido é o “renda”. Cuidado também quando a unha está grande demais para não dobrar, quebrar e nem puxar fios de roupas. Já temos tantas preocupações e mais estas... Não suporto também o papo das manicures, cabeleireiras ou clientes, que só sabem falar de “notícias” das revistas Caras e das fofocas das pessoas do bairro que são atualizadas semanalmente.
Nunca aconteceu comigo, mas quando a unha cresce pode inflamar a pele ao lado e resultar na famosa unha encravada que tanto inferniza a vida das pacientes e dos médicos de plantão, que, por não saberem o fazer com aquilo, chamam os dermatologistas para resolver a questão. Parece que tem que botar um calço na unha para levantar um pouco da pele, mas isso, eu nunca aprendi direito.
O pior é que não faço as unhas por opção e ainda levo fama de roedora compulsiva. É claro que não digo isso para as pessoas, prefiro dar um motivo mais nobre, falar que é por causa do pandeiro que estou aprendendo a tocar e tenho de mantê-las sempre bem aparadas. É convincente e ainda saio com ar de pessoa cool. Gosto do original, do intocado e do imperfeito. Entre o saudável e o belo, fico com o primeiro e renuncio só um pouco do meu lado feminino.
A colombina desconhecida e o pierrot molhado
Foi num bloco que eu a conheci. Alta, morena, músculos tonificados na medida certa entre um bom amasso e um carinho sincero, olhos claros e confiantes, lábio inferior mais carnudo que o superior. Seu nome estrangeiro só aguçava ainda mais minha curiosidade e podia ficar ali conversando com ela horas apesar de todo o barulho que a bateria insistia em fazer. Eles tocavam muito bem, mas a música não passava de um ruído contínuo que escutávamos ao longe.
Apesar de ser cedo, ela estava muito animada, bebemos algumas cervejas, ela falava muito, gesticulava tão graciosamente que era difícil não notar seu charme. O toque, o cheiro, os cabelos, o sorriso, as gargalhadas. Se o humor é uma virtude de poucos, ela estava entre eles. Então, em alguns minutos, notava-se uma grande sintonia e me sentia como um peixe preso no anzol.
Foi quando começou a tocar o frevo do Caetano, que junto com a chuva fina que caía, fez todo mundo pular entre poças e guarda-chuvas, se abraçar e o inevitável aconteceu. Venha, veja, deixa, beija, seja o que Deus quiser! Um beijo cheio de desejo, vontade, delicadeza e carinho. Lábios que se querem, mãos que procuram e aquele frio na barriga. Não sentia isso há muito tempo, apesar dos últimos frustros romances.
Logo, pegamos o bonde para descer as ladeiras com alguma segurança, se é que isso é possível atualmente no Rio de Janeiro, e chegamos ao meu apartamento. Ao chegar, nada de cerimônias, como se nos conhecêssemos há anos, nos instalamos e começou a chuva de peças molhadas sobre o sofá, rede, cadeiras e chão. Seus poros jorravam uma sensualidade que eu absorvia a cada toque, a cada olhar. Minha mão, que já havia percorrido, seios, quadris e coxas, agora era enluvada por sua mucosa castanha, macia e doce. Movimentos inusitados, reações de prazer e sussurros ao pé do ouvido. Nossos quadris naquela coreografia ritmada eram um convite a nunca mais sair de dentro dela.
Era só o que eu lembrava quando acordei no início da noite e ela se arrumava para sair.
- Eu te ligo mais tarde, você é lindo, obrigada pela hospitalidade, foi tudo incrível.
Eu esperei até o dia seguinte e nada. Liguei algumas vezes, ela sempre simpática, com uma voz carinhosa, mas um pouco apressada e ocupada. Eu pensava nela o dia inteiro e eu realmente acreditava que aquela tarde significou alguma coisa para ela. Pobre pierrot! Para quem está apaixonado qualquer sorriso se transforma em declaração de amor.
- Hoje não posso, amanhã vou sair com amigos, depois eu não sei. Não está nada certo, mas tenho alguns compromissos também com minha família.
Cansada de cantar Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça, hoje, quarta-feira de cinzas, jogo na fogueira do amor mais uma quase-paixão. E se ela me amasse? E se tivesse me ligado no dia seguinte conforme o combinado? E se demonstrasse um pouco do cuidado que dizia ter por mim? Aí, folião, não seria carnaval, e o pierrot molhado não teria perdido a cabeça e não teria se embolado com a colombina desconhecida que conheceu naquela manhã chuvosa.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Pequenas coisas
Sou igual a todas as mulheres. Gosto das pequenas coisas, dos detalhes mais inúteis e discretos, dos ciscos despercebidos. Meu ex-marido não entendia isso. Não que tivesse salvado a relação, mas talvez uma máscara de dormir tivesse evitado algumas das nossas discussões, onde brigávamos pelas cortinas, eu querendo o escuro e ele, a brisa da manhã.
Gosto geralmente dos meninos que fazem sucesso com todas e é claro que essas relações nunca dão certo, porque ou eles são comprometidos ou galinhas ou os dois. Esse fim-de-semana fui num festival de jazz bem legal. Acho incrível como o mesmo padrão se repete em todas as bandas. O cara da percussão me encanta com todos os ritmos, instrumentos e afro-sex-appel. O da guitarra é sempre exagerado, espalhafatoso, histriônico, o famoso sem-noção. O do baixo, discreto, sério, compenetrado, de uma timidez intrigante.
Sou carente e ciumenta. Acho que nossa constante idéia fixa é de que não nos dão nosso devido valor. Seria uma conseqüência de séculos e séculos de opressão? Não gosto de receber ordem nem cobrança. Quero que escutem minha opinião e a levem em consideração. Quero que se interessem por mim, que me descubram literal e praticamente.
Tenho um fetiche muito comum: professores. Desejo a pessoa pelo que ela sabe, pelo que poderia aprender com ela. E isso me persegue desde o primeiro grau. Seria uma forma de compensar minha ansiedade e insegurança? Pois bem, nem pra isso sou criativa.
Desde criança tenho as coleções mais diversas. Uma das mais estranhas é a minha coleção de pedras. Minha mãe nunca entendeu por que eu colecionava aquilo, além de dar muito trabalho a ela na hora das mudanças e arrumações. Mas elas eram especiais para mim, cada uma com sua história, desenho, material, ranhuras. Valorizo as ranhuras.
Gosto de almofadas. Quer coisa mais inútil e comum que almofadas? Pois é, preciso de almofadas. Preciso por que gosto e pronto, não tenho que me justificar. Cada um com seu gosto, uns tem quatro bicicletas, outros três câmeras fotográficas, outros, dois computadores.
Parte do corpo favorita? Antebraço. Dá pra identificarmos a personalidade pelo formato dos ossos e musculatura. A virilidade pode-se perceber indiretamente pelos pêlos estimulados pela testosterona. Analiso as articulações... Tenho um cisto no meu punho. Acho que é no tendão do músculo do polegar. Isso diz muita coisa de mim, revela que sou frágil sob pressão, se fizer força e mau jeito ele incha e dói muito. Sofro de um problema de junta, de conexão, de mau contato, tá explicado.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
Motamorfose autofágica
Sou feita de pena e sangue, delicadeza e dor. Minha beleza não é comum. Me chamam de meiga, mas posso ser cruel. Nunca levantei nenhuma suspeita desse meu outro lado, nunca errei. E você me quer assim, singela, doce e perfeita. Porém, estou enjoada de mim, me quero ácida, me quero farta, me quero toda. A coragem que me move é grande e inevitável.
E, por isso, a metamorfose, que pode não ser completa, mas está em andamento. Me visto de mim, meu recheio sou eu. O que sou capaz de fazer? Há quem duvide. Beijar você, ela, ele, arrastar todos comigo. Te magôo, me magôo e ninguém compreende. Me entrego em seus braços e gozo. Mais de uma vez, lindamente. Vivo dez anos em uma semana e rejuvenesço. Experimento o que é bom e desconhecido.
Como quem se delicia com o fruto proibido, vou comendo lentamente pedaço por pedaço de meu corpo amorfo. E, rapidamente, sem que nem eu mesma perceba, ele renasce para me servir de alimento mais uma vez. Autofagia transformadora ao som dos grunhidos de horror. Sou eterna e tenho um novo rosto. Meus olhos vermelhos de mar te chamam.
Dance comigo esse Lago dos Cisnes, onde a morte é o caminho da liberdade. Segure minha mão bem forte porque a vida é curta e o sofrimento é grande. Não lamente a perda ocorrida, pois ela tinha que acontecer. Meu ventre agora sangra, e, em teus lábios surpresos, renasço forte e certa de que fiz o meu melhor.
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