Hoje atendi um homem jovem. Só mesmo uma doença muito grave e aguda para deixá-lo naquele estado. Completamente fraco, com fortes dores em todo o corpo, era pálido como o mais alvo papel. Toda a força e juventude não o livraram de seu destino. Seu sangue era doente, mas por quê?
- É preciso fazer uma ponta de dedo.
Gosto dessa expressão. Sempre me vem na cabeça a imagem de uma bailarina magra e delicada, equilibrando-se na ponta dos pés em suas sapatilhas mágicas. Esse exame ajudará a descobrir o que há de errado. Incrível seu significado, pois é pela ponta dos dedos que se recebe a energia. E é através dela que nós, médicos, podemos palpar uma ponta de baço ou o rebordo do fígado.
Uma espetadela e pronto. A gota gorda e escarlate está lá e se desmancha por capilaridade quando tocada pela lâmina aguda e fria. Rapidamente ela é distendida e forma um tapete fino de sangue sob a forma de uma chama de vela. Os corantes são prontamente misturados numa alquimia artesanal e particular. Muito simples e rápido. Lá estão elas! Miseráveis células imaturas, monstruosas e aberrantes que se multiplicam descontroladamente paralisando sua produção sangüínea. Sangüínea. Musical, não acham? O trema já acabou, mas me recuso a deixar de usá-lo. Nossa língua é tão bonita, pro inferno com a reforma ortográfica!
Como qualquer leigo, ele não faz idéia do que está acontecendo. Como dar a notícia? O que dizer exatamente? Não podemos prometer a cura, mas temos que lhe dar esperanças. Qual a melhor terapia? A doença é fatal, mas pode-se morrer também do tratamento. Pobre diabo!
No início, todos se desesperam, como que fadados ao terrível e irremediável fim. O passo seguinte é depositar todas as esperanças no tratamento oferecido, como se pudéssemos matematicamente prever o futuro. Nada lhe pode ser garantido, trabalhamos com probabilidades e não se sabe o que acontecerá. A doença irá remitir? Se remitir, se manterá silente? Poderá recair? O tratamento pode funcionar, mas e seus efeitos colaterais a curto e a longo prazo? Qual será seu benefício na sobrevida e na qualidade de vida? Quantas perguntas...
É difícil para o paciente raciocinar com tantas variáveis e optar por alguma coisa, então ele confia no médico. É um peso grande e uma dedicação gigantesca, não se pode negligenciar nada. Um simples sintoma pode mudar tudo. É uma relação muito forte e a vida daquele homem tão moço e robusto depende desesperadamente de mim. Não posso abandoná-lo, meu compromisso é com ele e não com a cura. Tenho que lhe garantir ao menos conforto.
Ele pode não saber exatamente de nada, mas sente e compreende quando alguma coisa não está indo bem. Protege-se em sua ignorância e deixa a vida caminhar. A falta de conhecimento muitas vezes é salutar. Permite que simplesmente se viva sem julgamentos e que se aprenda sempre. Liberta-nos da ilusão do pseudo-conhecimeto como verdade absoluta. “Só sei que nada sei” já dizia Sócrates. O paciente, portanto, sabe mais do que qualquer médico, afinal, ele é o doente.
Rio de Janeiro 17 Junho 2009
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