domingo, 22 de novembro de 2009

Viramunda

Não sou Anne Frank, mas tento, por meio desta espinhosa missão, falar de minhas aventuras e desventuras no velho, que para mim é novo, mundo. Não é exatamente um diário, porque não tenho nem paciência nem expertise para tal. Não narro minhas peregrinações, são apenas impressões sentidas por mim, um ser recém-nascido de um ventre mudo, ávida por experimentar: Daniela Viramunda. Meu novo sobrenome é uma respeitosa alusão a Geraldo Viramundo, personagem célebre da obra-prima de Sabino, que me acompanha e com quem me identifico enormemente.

Peço desculpas ao leitor não habituado à minha maneira de escrever. Já antecipo que pode ser uma leitura cansativa porque o que quero dizer vai além do que o que está escrito e depende da colaboração e sensibilidade de quem lê. Não esqueço do que aprendi com uma professora muito querida: “escrever é cortar palavras”. Porque nem tudo pode ser explicitado de maneira óbvia, para que as palavras não esmaguem e matem as entrelinhas. Preciso preservar o frescor que sopra nas entrelinhas e nos torna mais leves.

Apesar desta professora, nunca fiz curso de redação, ou recebi qualquer instrução profissional. Sou, por assim dizer, uma auto-didata. Escrevo de ouvido. Na tentativa e erro, aprendo comigo mesma, tentando me expressar.

Pois então, me lanço ao meu destino nômade de viajante, emigrante, visitante, passante. Sempre partir e nunca chegar. Para onde vou, afinal? Como ciganos, caixeiros-viajantes ou marinheiros-mercantes, tento seguir minha vocação peregrina e conhecer o que existe, ampliando meu horizonte e me tornando cidadã do mundo. Sigo os conselhos de Paulinho da Viola: “as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”.

Inicio minha jornada desbravando a medieval Bavária. Os castelos, reis, cavaleiros e armaduras me remetem a uma época de muitas guerras, tortura e sofrimento. A religião como questão central e a música como refinado prazer. Compartilho de tudo isso com esses desconhecidos habitantes antepassados. Minha fé em Deus, que está em tudo, minhas armas que manipulo ainda sem destreza para me defender de meus inimigos e de mim mesma, que teima em me sabotar. Tenho que cravar um punhal certeiro no peito dela, que na véspera da viagem, sonha com o doloroso e imutável passado que insiste em rondar e limitar as possibilidades do presente e futuro. Porém, apesar dos pesares, tenho a música em meu coração, que suaviza tudo ao meu redor. Os violinos de Mozart se tornam familiares e despertam meu interesse pelo erudito mundo da ópera. Quem diria, eu, que vim da escola do samba, degusto com muito prazer de “La Bohème”, de Puccini! Importantes reencontros, agradável convívio e aprazível estadia. Hora, portanto, de mudar.

Parto de trem para a Boêmia, onde gozo dos prazeres do líquido fermentado de cevada, malte e lúpulo. Muitas opções, muitos sabores e sempre em generosos recipientes. A terra- natal da cerveja é mesmo surpreendente, com toda sua arquitetura e história. Suas cem cúpulas e tudo tão próximo e tão acolhedor... Também te recebo, Cidade-Luz do Leste, e me arrisco no seu impronunciável idioma. Gente bonita e simpática. Começo a entender seu funcionamento, disposição geográfica, transportes e... já é hora de partir.

A paisagem da janela é um espetáculo a parte. Interesso-me, em particular, pelos rios. Será que me lembro de todos? A ver: Isar, Danúbio e Moldávia. Ainda virão Spree, Amstel e Sena.

Descubro que os espertos e oportunistas não estão somente no Brasil e é preciso ter atenção e informação sobre tudo, e aprender a não confiar.

Próxima parada: a cosmopolita, moderna e histórica capital alemã. Quantos acontecimentos já ocorreram sobre este solo, quanto sangue derramado, quanta vontade de viver! Combustível para a impressionante reconstrução. Passo a valorizar a liberdade ainda mais e a perceber como é cruel e maravilhoso o mundo em que vivo. É a dualidade da vida em cada praça, monumento, igreja ou museu. Nem o frio de -5º. C, nem a chuva de granizo, nem os dedos e o rosto dormentes tiram meu prazer de ser. De decidir meu destino ali na hora, de descumprir os meus planos de uma hora atrás e de me permitir exercer minha individualidade. Impressiono- me com a independência dos europeus e quero um pouco dela para mim, uma tupiniquim de fraldas, que engatinha rumo ao amadurecimento. Cadeirantes e cegos se deslocando normalmente, trabalhando e se divertindo. Idosos com gigantes mochilas de tracking e bastões sempre prontos e dispostos para mais uma caminhada. Não é possível que eu não consiga!

Para alimentar a alma, nada melhor que um concerto filarmônico sob a regência de um empolgado maestro e a companhia de uma excelente e descabelada violonista. Quanta astúcia, quanta grandiosidade, quanta perfeição! Dentro daquele enorme prédio moderno os problemas se tornam pequenos e sem importância. Mais um dia de andanças e sigo o caminho dos trilhos.

Neste momento, devo fazer uma pausa para dizer uma coisa. Só quem já passou por isso vai entender o que eu vou dizer agora. É como eu me sentia no início da viagem e como me sinto agora. Eu me sentia como se eu mesma tivesse apertado o botão da descarga do banheiro químico do avião, e, subitamente tudo o que existia dentro de mim tivesse sido sugado para um buraco negro e eu estivesse oca por dentro. Minha pele se colabou com o efeito do forte vácuo e formava a só superfície. Era extremamente difícil e asfixiante viver nesse ínfimo espaço virtual. Ao longo da viagem, fui preenchendo o espaço interior com o que encontrava de interessante no caminho. Então fui juntando cultura, arte, música, história, sociedades, línguas, estilos de vida, modos de pensar dos outros, minha reação a tudo neste meu delicioso e doce recheio. Um enchimento feito de diversidade e novidades. Agora, tendo alguma coisa concreta que alargue meu peito e me deixe respirar fundo, posso me sentir mais confortável comigo mesma, mais segura estando somente na minha companhia. Desfrutando os prazeres do ser. O quê? Eu, agora. Hoje, eu sou a estrela e minha hora chegou! Não sou como Macabéa que aceita a maneira como é tratada por Olímpico, nem espero que desça dos céus a figura idealizada do estrangeiro salvador, Hans. Não espero nada de ninguém, o que vier, aceito de bom grado, pois lucro é.

Mas, é claro, nem tudo sai como esperado e tenho que contornar dificuldades, resolver problemas surgidos neste momento e enfrentar o medo do desconhecido. Não se pode fugir do medo. Tenho é que aprender a conviver e controlar este sentimento tão ansiogênico quanto paralisador. Como aliada, tenho a razão, que me dá a melhor solução e me acalma baseada na realidade dos fatos. Busco acalanto em mim mesma, nesta retro-auto-alimentação salutar.

Sigo neste trem, certamente mais moderno que a locomotiva de ferro que foi corajosamente parada por Geraldo Viramundo em Rio Acima. Apesar do conforto e da velocidade, dez e meia longas horas separam as duas cidades. Isto porque houve um atraso de uma hora no primeiro trem, que comprometeu o segundo trecho da viagem. Paciência! O que importa é chegar e o albergue me garante que meu quarto espera por mim. Nessa vida, as dúvidas são tantas... Como é bom ter certezas!

Ao chegar na Veneza do País-Baixo, tenho certeza de estar numa cidade encantadora. Seu casario de tijolos vermelhos e pretos com janelas e portas brancas, às vezes vermelhas, é extremamente simpático, cortado pelo labirinto de canais e uma legião de barcos, alguns na realidade, residências. Como é bom andar a pé ou de bicicleta por suas pitorescas ruas. Sonho da pequena Anne, segundo seus textos, e concretizado por mim. Os desejos da menina escondida no anexo são nossas possibilidades de hoje. Aproveitemos, então! Vamos correr por essas vielas, gritar, dançar, cantar, fazer muito barulho, sentir o aroma das tulipas recém- colhidas e viver. Aprecio as flores impressionistas e impressionantes nas telas do gênio incompreendido e solitário. Uma explosão de cores e traços que não buscam a perfeição e sim a tradução do mundo segundo a sua ótica. O mundo era difícil demais para ele, e, por isso, desistiu. Eu, no entanto, não desisto de tentar a vida, a alegria e o amor. Por isso, vamos em frente, pois ainda há muito por vir.

Sob o olhar atento de Egon Shiele no auto-retrato que enfeita a capa do caderno, prossigo protegida rumo a Cidade Luz, para o tão esperado reencontro. Gosto de tudo aqui, especialmente das ruas e dos museus. No primeiro dia, me divirto com os surrealistas, que, com seus bigodes milimetricamente afinados, elevados, retorcidos e espetados nos mostra que um novo caminho é possível. A sensualidade engraçada e provocadora como instrumento fundamental da mudança. Porque há de haver espaço para o desejo, o estranho, o diferente, o feio, o improvável e o delírio. Que segredos escondem as gavetas do ser humano? Como funciona um relógio derretido? Homem invisível, homem sem cabeça, mão sem corpo, o que a imaginação permitir... Quebrar as algemas da realidade e sonhar. Sonho um dia poder fotografar decentemente as lindas estátuas do escultor que embelezam seu ensolarado jardim. Abençoadas pela Torre e pelos Inválidos, vocês são abençoadas, obras-primas, pois traduzem a força, movimento e expressão do homem. Estátuas de bronze que transmitem sentimentos, ações, cheiros e sons. Isso é arte, afinal!

Arte espalhada nos prédios, jardins, torres, igrejas e pontes. Até parecem terem sido projetadas de maneira a se alinharem formando perfeitos cartões-postais. Uma cidade em que cada esquina esconde uma deliciosa surpresa: café, lojinha, praça, livraria, restaurante... Onde a retrô art-nouveau floresce, cresce e enobrece os olhos de quem aprecia suas moças-donzelas, frutas, folhagens, espelhos e formas geométricas.

Mas será que a vida aqui é tão diferente da brasileira? Vejamos... a feira livre é bem parecida, com feirantes oferecendo seus produtos em alto som, descontos, amostras-grátis e gracejos para senhoritas. Vendem também produtos incomuns nestes mercados no Brasil, como ítens de beleza, limpeza, chocolates e balas, mas, em geral, se assemelham. Assim como se assemelham os pedintes nos ônibus e metrôs, em seus quase-repentes, que narram quem poderiam ser, quem são e pedir qualquer trocado para a difícil subsistência. O trânsito de carros é mais caótico que no resto do continente, mas, sem dúvida, é mais civilizado que o brasileiro. Ainda não me acostumei a passar na faixa de pedestre, mesmo o sinal estando aberto para mim! É a cultura do desrespeito que ainda trago comigo, a lei do esperto. Logo eu, que de esperta, não tenho nada, boba que sou! E usufruo de minhas vantagens e desvantagens por isso.

No meu último dia da viagem já estou cansada física e mentalmente, desejosa de voltar. Como meu vôo é somente à noite, tiro ânimo de não-sei-onde e aproveito o dia para me despedir da cidade com longas caminhadas. Começo, então, pelo gigantesco e louvado museu-castelo-palácio, que já havia visitado em outra oportunidade. Meu tempo é curto e não admite que eu fique na quilométrica fila. Por isso, dessa vez não vi a enigmática de Da Vinci, contentei-me em apreciá-lo só por fora. O tempo ajudou bastante e foi um agradável passeio pelos jardins, avenidas e praças até chegar ao triunfal arco. Com meu iPod nos ouvidos e máquina na mão me divirto descobrindo ângulos, caretas, placas, carros,... E eis que chego ao auge da independência: tiro fotos de mim mesma, não preciso de ninguém nem para isso!

Adeus, cidade dourada, cidade amada, um dia hei de voltar, aprofundar meus laços contigo e fazer parte de ti. Que eu possa preservar essa boa-aventurança, essa paz interior que construi nesses vinte e seis dias, e fortalecer a minha poderosa fragilidade. Por hora, meu desafio é conseguir fechar as malas que estão lotadas de lembranças de todos os lugares por onde passei, e seguir meu retorno para a minha querida Cidade Maravilhosa.

Europa, de 03 a 27 de Outubro de 2009

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